‘Paraíso’ flutua entre a saudade e a melancolia, mas nada tem de depressivo

No começo de Paraíso, ouve-se a voz do diretor. Sérgio Tréfaut diz ter saído do Brasil ainda adolescente. Volta, mais de 40 anos depois, em busca dos restos de um país mantido na memória. O filme, que está no Festival É Tudo Verdade, foi realizado nos jardins do Palácio do Catete, sede do governo brasileiro até a fundação de Brasília, em 1960. Com a nova capital, o palácio virou museu e seus jardins foram abertos ao público. Nessa área de lazer passeiam ou descansam mães com carrinhos de bebês, estudantes, office-boys e aposentados. É também ponto de reunião de um grupo de idosos, o pessoal da Seresta, que se reúne para cantar e tocar músicas do repertório brasileiro. Sambas, choros, sambas-canção, músicas da melhor qualidade. As filmagens foram feitas pouco antes da pandemia do novo coronavírus.

Amamos a música ao vivo. E amamos fazer a nossa própria música, mesmo que ela seja imperfeita em relação àquela produzida pelos profissionais e pelos grandes mestres. Desse modo, o pessoal da Seresta vai ao jardim do Palácio do Catete não apenas para escutar, mas para tocar e cantar. São todos – ou quase todos – da chamada terceira idade. Adivinham-se longas vidas e muitas histórias por trás daqueles rostos. O ritual diário, ao entardecer, é uma oportunidade de encontro entre pessoas. Fazer e cultivar amizades. E mesmo de novos amores, como é o caso do homem e da mulher que comunicam seu noivado ao grupo.

A música pode ser também curativa, como assegura a senhora que, depois de perder o marido, enxergava fantasmas pela casa e não conseguia mais dormir. Até que uma amiga a levou ao grupo e a incentivou a fazer o que ela desejava desde a juventude, mas tinha sido impedida até então: cantar suas músicas preferidas. Cantar, e não no banheiro ou na cozinha, mas para um grupo de amigos e amigas, o que faz toda a diferença. A música aspira à sociabilidade.

O filme deleita-se nas canções e deixa que elas sejam ouvidas por inteiro. Há cenas comoventes, como a da senhora que completa cem anos de idade, e, com muita dificuldade, consegue entoar uma valsa que deve tê-la inspirado na juventude. Tudo é feito com muita sutileza e respeito. Os músicos têm também vez, como no depoimento muito lindo de um bandolinista. Ele terá presença marcante no desfecho, como se verá.

Paraíso flutua entre a saudade e a melancolia, mas nada tem de depressivo. Pelo contrário. A saudade, dizia o grande diretor português Manoel de Oliveira, nada tem de reacionário: é testemunha de algo bom e que por isso nos faz falta. Buscamos o bom e o bem, mesmo em meio ao mal? Esta é uma questão que os brasileiros devem enfrentar.

E Tréfaut reencontra o país em que vivia antes de partir? Sim e não. O Brasil que conhecera estava vivo, pelo menos em sua memória e na de muitos outros. Mas, talvez, um pouco à maneira do quarto de Manuel Bandeira, no poema Última Canção do Beco:

“Vão demolir esta casa.

Mas meu quarto vai ficar,

Não como forma imperfeita

Neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros,

Intacto, suspenso no ar!”

Aquele país estava vivo também naquele grupo de idosos, reunido para celebrar a música e a própria vida a cada fim de tarde. Pelo menos, até março de 2020, quando a pandemia chegou. O filme é um tributo a ela, essa geração dizimada. Neste tempo brutal, filmes como Paraíso são um bálsamo de delicadeza.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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