‘Interesses das polícias são corporativos’

O antropólogo Roberto Kant de Lima vê com ceticismo a possibilidade de uma tentativa de ruptura institucional a partir das Polícias Militares em favor do presidente Jair Bolsonaro. “A hierarquia policial está subordinada à hierarquia do Exército”, afirmou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista na área de Segurança Pública. “Fugir disso seria motim, ou então os oficiais-generais teriam que aderir à insubordinação.”

Lima observou ainda que a agenda das Polícias Militares é corporativa, e é a combinação desse corporativismo com o conservadorismo que dá força a Bolsonaro nas PMs.

Leia trechos da entrevista.

As PMs querem ter um papel político, como no passado tiveram as Forças Públicas?

O interesse dos policiais podem até ser, por parte de alguns, o de ter acesso ao poder. Mas os interesses das polícias são, essencialmente, corporativos, no sentido de obtenção de benefícios para a sua categoria profissional, sem considerar, necessariamente, as conveniências e os reflexos disso no resto da sociedade.

Qual é a agenda das PMs hoje?

Essa aí: corporativa.

Essa agenda é anterior a Bolsonaro, que apenas a adotou, ou ele teve papel decisivo na sua formulação e agitação?

Bolsonaro sempre se identificou politicamente, na qualidade de ex-integrante do Exército, como defensor de interesses militares corporativos. As Polícias Militares no Brasil, desde a Constituição de 1988, são definidas como “militares estaduais”. Entraram nessa categoria inclusive os soldados. Vai daí, as vantagens corporativas militares também passaram a ser reivindicadas por elas, inclusive para a tropa. Expandiu-se o público envolvido.

O que favorece a expansão do bolsonarismo nas PMs?

Esse corporativismo. Além disso, a adoção de uma pauta conservadora e, ultimamente, de uma certa inclinação obscurantista, negacionista de valores contemporâneos, conduzida por alguns líderes que se apresentam como representantes da moral cristã evangélica, também colaboram para a conformação e fortalecimento de análogos pontos de vista: guerra às drogas, homofobia, extermínio de transgressores etc.

O fim da possibilidade de prisão disciplinar do policial militar, adotado no início do governo Bolsonaro, ajudou a criar o atual clima de politização das PMs?

A questão não é essa. Nas PMs, os regimes disciplinares são desiguais para oficiais e praças. E os praças se veem frequentemente punidos administrativamente enquanto os oficiais que com eles transgrediram dificilmente o são. Há, definitivamente, dois pesos e duas medidas. E muitas vezes, como no Rio, de instâncias que aplicam desigualmente essas penalidades nas auditorias militares para uns e outros. Essa é a grande questão da punição na PM: a desigualdade de tratamento, que espelha uma separação, reforçada pela dupla entrada na corporação, uma para os oficiais, outra para os praças, entre quem manda e quem obedece, que fortalece a permanente sensação de impunidade de alguns e traz imensos prejuízos à efetividade do trabalho policial.

Como vê a possibilidade de PMs da ativa participarem da manifestação convocada pelo presidente para o 7 de Setembro?

Não sei. Mas, se for para ajudar a aumentar a pressão por privilégios, pode acontecer.

Como fica a segurança pública se as PMs se politizarem definitivamente?

Depende do que você chama de politizado. Se quer dizer que o ethos institucional das polícias não está voltado para proteção da sociedade, mas do Estado – e, mais, de alguns funcionários do Estado -, elas estão politizadas desde o século 19. Se for para dizer que empregam meios impróprios para administrar a segurança pública especialmente em desfavor de segmentos específicos da população, elas já fazem isso há bastante tempo.

As PMs podem ser usadas para um golpe de Estado, como ocorreu na Bolívia?

Não sou cientista político, mas comungo com a ideia de muitos, de que golpes de Estado em países das dimensões econômicas, políticas e sociais do Brasil têm que ser apoiados pelas classes produtoras, pelos servidores do Estado e pelas Forças Armadas. Um lado só não basta. Ademais, no Brasil não há generais na polícia, como há em outros países. A hierarquia policial está subordinada à hierarquia do Exército. Fugir disso seria motim, ou então os oficiais-generais teriam que aderir à insubordinação, para levá-la à frente, comandando-a. Aí já não seria uma insubordinação policial. Isso seria possível? O Exército continua controlando o armamento pesado. A polícia tem efetivo combatente maior, mas, como já apontei, é subordinada constitucionalmente e corporativamente ao Exército. Para um golpe, ou o Exército controla, ou se alia e comanda.

Quais reformas deveriam ser feitas para despolitizar e profissionalizar as PMs?

As polícias nas sociedades capitalistas burguesas têm a função de investigar infrações, neutralizar distúrbios de massas e administrar conflitos entre os cidadãos. A nossa polícia não tem nenhuma dessas “missões” como prioridade institucional. Nem mesmo essas atividades contam pontos na produtividade individual e coletiva. O que vale é apreensão de armas e drogas etc, é a atividade criminal. Esta deveria, sempre, ter como prioridade a investigação. É como no filme O Nome da Rosa: de um lado tem o Sean Connery investigando para descobrir as evidências e definir o transgressor; de outro tem o abade inquisidor punindo os suspeitos.

Que tipo de PMs o Brasil terá depois de Bolsonaro?

Se nada mudar, com ou sem Bolsonaro, o mesmo, provavelmente. Infelizmente.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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