Impacto do filme ‘O Som do Silêncio’ no público surdo

A resposta do público surdo ao filme O Som do Silêncio, indicado para seis categorias no Oscar 2021 e disponível no Amazon Prime Video, tem sido mais de elogios que críticas ao abordar o tema da surdez. A obra do diretor e roteirista Darius Marder conta a trajetória de um baterista que perdeu sua audição de forma repentina. O filme busca inserir o público na jornada sensorial em que Ruben (Riz Ahmed) aprende “como ser surdo” ao mesmo tempo que o próprio público. Hoje, um quarto da população mundial tem algum grau de surdez, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, divulgados em março.

Pesquisadora do cinema surdo e professora de cinema e produção audiovisual, Fabiana Bubniak destaca que o filme não repete estereótipos de personagens surdos que costumam ser representados no cinema. “O filme foge de uma narrativa clássica com personagens surdos que é a vitimização deles. Para o público ouvinte que não tem contato com surdos, há a questão da identidade surda.”

O youtuber Gui Fernandes, 23 anos, que é surdo profundo oralizado (se expressa por voz e não por sinais) e usa dois implantes cocleares, aponta muitos acertos do filme ao retratar a surdez, em especial, na construção do personagem principal.

“O filme foi extremamente fiel a detalhes que só surdos captariam na hora, como a cena em que um personagem coloca a mão na boca só para dar uma coçadinha. O outro interrompe e pede para repetir, pois esse pequeno ato involuntário de poucos segundos atrapalhou a leitura labial. Além disso, normalmente em filmes feitos para pessoas sem deficiência, o personagem com deficiência quase sempre é visto como um herói, que tem que superar todos os obstáculos.”

Fernandes lamentou que a Amazon Prime não disponibilize legendas descritivas (para surdos) em português. “Infelizmente, isso é muito comum nas plataformas de streaming. Isso acontece porque normalmente as legendas-padrão são para pessoas (ouvintes) que não sabem a língua original do filme.”

O Som do Silêncio recebeu outros elogios por incluir atores surdos para alguns papéis, como Lauren Ridloff (Diane), Chelsea Lee (Jenn), Shaheem Sanchez (Shaheem) e Jeremy Lee Stone (sem nome, professor de língua de sinais americana), além de figurantes surdos.

Enquanto o protagonista Ruben é interpretado por Riz Ahmed, que é ouvinte, o papel de Joe ficou com Paul Raci, que é considerado como Coda (Children of Deaf Adult). A sigla significa “filho de adultos surdos”.

Implante coclear

A experiência do protagonista do filme com o implante coclear também tem sido motivo de grande discussão entre pessoas surdas e médicos da área. O otorrinolaringologista Luciano Moreira avalia que as principais críticas recaem tanto pela superficialidade de algumas informações sobre surdez e o implante coclear, quanto pela inexatidão de outras. A cena do diagnóstico da surdez, quando o médico realiza um exame de audiometria e diz que o protagonista precisa fazer o implante, é precoce e simplista, diz Moreira.

“A indicação do implante coclear só é feita depois que o paciente cumpre um processo de avaliação multidisciplinar que se dá em etapas. Isso compreende a consulta médica e testes auditivos mais elaborados do que mostra o filme. Também solicitamos exames de imagem, além de uma cuidadosa avaliação com fonoaudiólogos e eventualmente psicólogos.

Depois, nós precisamos ter certeza de que não apenas o paciente tem indicação médica para o implante, mas que ele e sua família estão cientes de todas as etapas envolvidas, e com as expectativas de resultado devidamente ajustadas à realidade. Além disso, o tamanho da incisão da cirurgia e da cicatriz é completamente ultrapassado. Fazemos uma incisão entre 3 e 4 cm, praticamente sem raspar cabelo nenhum, e depois a cicatriz fica invisível escondida pela própria orelha”, afirma.

O som “estranho” que Ruben ouve após colocar o implante coclear não é apenas comum, mas esperado. Moreira destaca que o cérebro é adaptativo e os implantes são apenas as portas de entrada do som para a via auditiva. “Sempre dizemos que quem ‘escuta’ é o cérebro, e não os ouvidos. O cérebro de quem não ouve ficou muitas vezes meses, anos ou décadas sem ouvir. Não se pode esperar que ele vai achar agradável um estímulo que desconhece há tanto tempo.”

Gui Fernandes, que realizou suas cirurgias de implante coclear através do SUS, conta que a experiência inicial de Ruben com o aparelho é comum. “Nós não estamos acostumados com sons tão potentes, então não conseguimos identificar imediatamente. Depois de um tempo, começamos a ouvir ‘mais limpo'”, comenta.

O uso do dispositivo, assim como retratado no filme, não é totalmente aceito entre as pessoas surdas. Paula Pfeifer, usuária de implante coclear e autora dos livros Crônicas da Surdez e Novas Crônicas da Surdez, diz que sofreu e ainda sofre ataques por ter decidido buscar ajuda para voltar a ouvir.

“O que acho desagradável nessa militância antitecnologia é que ela é antiescolhas pessoais, e feita por pessoas que, supostamente, lutam pela diversidade, mas não aceitam a diversidade da surdez. O que mais gostei é que o protagonista (Ruben) decide tentar voltar a ouvir, mesmo após ser profundamente influenciado pelo personagem Joe a não fazer isso.”

Foi por isso que Paula iniciou o movimento #surdosqueouvem para promover representatividade. “O lobby antirreabilitação auditiva faz estragos enormes na educação e na vida de muitas pessoas. O implante coclear não cura a surdez, eu continuo com surdez profunda”, afirma.

Silêncio como um ganho. Uma das categorias em que o filme foi indicado para o Oscar é Melhor Edição de Som. O filme apresenta a experiência física da perda auditiva através de uma abordagem sonora cuidadosa. O foco no abafamento e distorção e as sensações que Ruben experimenta ao usar seus implantes, assim como o próprio silêncio, são momentos educacionais importantes.

“O silêncio é um ganho, não é essencialmente algo ruim como muitos ouvintes pensam. Talvez o melhor trabalho do filme é o desenho de som. O surdo tem esses sons interiores que o filme consegue captar muito bem”, analisa a pesquisadora Fabiana Bubniak.

Paula explica que o silêncio pode ser maravilhoso em muitos momentos. “Amo ouvir, mas adoro ter o privilégio de poder voltar ao silêncio com o simples toque de um botão.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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