Ianomâmis: governistas pedem presença do Estado e expulsão de garimpeiros

A comissão temporária externa do Senado que acompanha a crise humanitária no território indígena ianomâmi, em Roraima, ouviu representantes do governo federal em audiência pública nesta quarta-feira (29). Entre as principais medidas, senadores e representantes do governo defenderam a execução de uma política pública, com a presença permanente do Estado para garantir a proteção social e ambiental desses povos e das suas comunidades. Eles também pediram mais recursos para as ações, cobraram a punição dos responsáveis pela atual crise humanitária e a expulsão dos garimpeiros da região. 

A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) lembrou que cerca de 570 crianças ianomâmis morreram em decorrência de desnutrição nos últimos quatro anos. Para ela, é preciso acompanhar as investigações que estão em curso sobre o desvio de recursos e a ausência do Estado, buscando a punição de todos os atores responsáveis pela crise no território. Ela citou como exemplo as denúncias de desvio de medicamentos e vendas de vacinas para trocar por ouro. 

— A gente precisa ver quem está por trás de tudo isso. Quando nós estivemos na Polícia Federal ele apresentou um volume milionário de desvio por conta da falta do rastreamento do ouro e, portanto, essa comercialização do ouro. E eu fiquei estarrecida com a quantidade de dinheiro que é movimentado. Ou seja, não é qualquer pessoa (…) Então onde está o ponto principal? É o desvio de recursos públicos? Nós temos informação que apenas uma entidade pode ter tecido R$ 1 bilhão durante quatro anos. Significam R$ 500 milhões por ano. Ou seja, um volume milionário. Para onde foi esse dinheiro? Onde foi aplicado esse dinheiro? — questionou a senadora. 

Na avaliação da presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, a crise na região não é recente, mas se agravou nos últimos quatro anos e foi alvo de denúncias, inclusive por parte de deputados e senadores ainda no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo ela, a origem se deu por três razões: presença de invasores, aumento do garimpo ilegal e ausência do Estado. Entre as ações prioritárias ela defendeu ter como referência o plano de gestão territorial a ser apresentado pelos próprios ianomâmis para que sejam elaboradas as políticas públicas adequadas de longo prazo com o objetivo de garantir as seguranças alimentar e de saúde, além da extrusão de invasores da localidade. 

Ela informou que um dos meios para isso será através do incentivo à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a reiteração da ordem de retirada de todos os garimpos ilegais das terras indígenas ianomâmi, karipuna, uru-eu-wau-wau, kayapó, arariboia, mundurucu e trincheira bacajá. A ação trata da proteção aos povos indígenas durante a pandemia da covid-19, a partir de pedido de providências apresentado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

— Existe também o fortalecimento das atividades produtivas, a promoção dos direitos sociais, dos planos de recuperação ambiental que têm que haver. Porque nesses longos anos de contaminação da água por mercúrio, inclusive, é urgente se pensar em uma política de recuperação ambiental. Tanto das áreas desmatadas como das áreas contaminadas. A questão da construção e ampliação das bases da Funai ali. É importante que haja a presença do Estado brasileiro — ressaltou.

Ela criticou ainda a impunidade dos responsáveis pela crise humanitária dos ianomâmis, seja de forma direta, indireta e, até mesmo, por omissão, e defendeu a aprovação de medidas para possibilitar o rastreamento da origem do ouro ilegal, identificando e punindo quem está se beneficiando com os crimes. 

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, discordou na senadora Eliziane em relação a assistência aos ianomâmis nos últimos anos. Ela disse que houve atenção, principalmente por parte dos agentes de saúde indígenas:    

— Houve assistência nos últimos quatro anos. Nós tivemos o episódio de pandemia. E aí quando eu falo “desassistência” eu me preocupo muito com aquele agente de saúde que está em área ianomâmi. 50% são indígenas. E eles se esforçaram muito nesse período. E a gente precisa fazer esse registro de quem está lá na ponta. Talvez não houve uma coordenação, mas esse agente de saúde se esforçou, ele foi lá, ele se colocou em risco especialmente no período de pandemia. 

Solução de continuidade

Marcos Kaingang, diretor do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, participou da reunião representando a ministra, Sônia Guajajara, que está em compromisso fora do país. 

Ele afirmou que por ainda ser um ministério novo, criado em janeiro deste ano, a pasta buscou, nesse primeiro momento, organizar a condução, planejamento, execução e o acompanhamento das políticas indigenistas, focando o compartilhamento de atribuições com outros ministérios — como o da Defesa e da Saúde e a criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami. 

No entanto, ele citou como desafios para a implementação das ações a falta de servidores para atuação local, a limitação orçamentária e a participação de outras frentes que podem auxiliar nesse processo, como os governos estaduais, municipais e as lideranças das comunidades locais. 

— O Ministério dos Povos Indígenas tem esse papel também, além da implementação das políticas indigenistas, mas o crucial é o diálogo com as lideranças das comunidades indígenas lá do território. Sem esse diálogo a gente não consegue articular as ações e os planejamentos das políticas públicas.

Na opinião do diretor de Programa da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, Jorge Luiz Rocha Reghini Ramos, o problema deve ser encarado a partir da transversalidade de todas as frentes responsáveis, olhando para as especificidades que a região demanda, como a questão logística e a dificuldade de disponibilidade de profissionais para atendimento nas comunidades. Ele informou que, para que todos os órgãos mantenham suas ações, o governo já está estudando enviar ao Congresso um projeto de lei [PLN] que abre crédito extraordinário em torno de R$ 925 milhões, além dos mais de R$ 600 milhões já previstos no Orçamento Geral da União deste ano.   

— A emergência por desassistência é o sintoma da doença que tem causas estruturantes por trás dela. E o enfrentamento dessa situação tem que envolver desde as ações que enfrentem esses sintomas, que são as ações mais imediatas de assistência à saúde da população, mas também um conjunto amplo de medidas estruturantes que permitam que, ao longo do tempo, sejam mantidas as devidas condições de vida da população ianomâmi.

O senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) manifestou preocupação com a limitação orçamentária e a demora nas nomeações de servidores para atender  a comunidade com a urgência que a situação exige. Ele pediu agilidade no envio do PLN abrindo crédito extraordinário para a Secretário Especial de Saúde Indígena (Sesai) e para a Funai. Ele também pediu a participação de cientistas nas frentes que trabalham pela recuperação ambiental. 

— É importante que o Ministério [da Fazenda] e o governo pensem em um PLN rapidamente, porque é urgência. A gente não pode ficar esperando as coisas acontecerem. É necessário que isso seja feito numa ação pelo governo, mais especificamente pela Fazenda, pelo Planejamento, para que esse PLN chegue mais rápido, porque aí a gente pode trabalhar nele aqui.  

O senador Humberto Costa (PT-PE) reforçou o compromisso do Senado e do governo Lula com o encontro de uma solução definitiva em respeito integral aos direitos dos povos originários e defendeu que o programa Mais Médicos possa oferecer profissionais para atendimento nesses territórios.  

— Do direito à terra, do direito à saúde, do direito à educação, tudo isso respeitando os valores, os costumes, a cultura dessa população. E eu entendo que neste governo nós estamos tendo uma preocupação genuína, que não é uma preocupação em termos das palavras, mas em termos das ações.  

Atribuições 

A senadora Damares Alves se disse muito preocupada com a divisão das atribuições de todas as pastas. Ela chamou atenção para o fato de que, mais à frente, os órgãos podem passar por alguma situação que leve a um conflito de competência. 

— Nós vamos acompanhar a MP. Nós estamos acompanhando essa discussão, mas na hora de dividir as atribuições: nós temos um Ministério dos Povos Indígenas, um Ministério dos Direitos Humanos, uma Funai e temos uma Sesai. Temos a educação indígena lá no MEC. Como vocês vão cuidar de tudo isso para que daqui a pouco um de vocês não sente aí na mesa sendo acusado de omissão que era atribuição do outro? Nós vivemos isso nos últimos anos. 

Em resposta, tanto o representante do novo ministério como a representante da Funai reforçaram que todos os órgãos da União ligados às políticas de assistência aos povos indígenas possuem suas competências definidas e previstas em lei e que, especialmente o Ministério dos Povos Indígenas, foi criado para coordenar todas as ações. 

Isolamento x integração 

Chico Rodrigues (PSB-RR), presidente da comissão, questionou sobre como é a visão dos próprios indígenas em relação a integração de seus povos com a cultura urbana e a necessidade de se combater discriminações.

— Nós sabemos da necessidade dessa integração. Partindo de uma abordagem dos dois, que são indígenas [Joenia Wapichana e Marcos Kaingang], isso esclarece a opinião pública brasileira sobre esse sentimento que, espero, seja de toda a população brasileira. 

Joenia Wapichana explicou que é preciso romper com “pensamentos assimilacionistas” e parar de tratar o indígena de forma estereotipada. Para ela, ao não reconhecer as necessidades e especificidades de cada comunidade e as particularidade do indígena que não está isolado, deixando-os fora das políticas públicas específicas, o Estado contribui para o aumento da discriminação e discursos de ódio contra essas populações. 

— Eu trago essa questão não é de querer ou não integrar. É de acesso aos direitos, principalmente. Os indígenas têm o direito de decidir como querem viver. Inclusive os ianomâmis. Se querem viver no seu território, estamos pensando como obrigação do Estado. Os indígenas isolados estão ali isolados porque querem viver, mas a gente, como Estado, precisa levar a proteção de direitos — enfatizou.

Hospitais permanentes 

Além da assistência urgente de saúde aos ianomâmis e da estrutura permanente para a atenção primária prevista para a região, o Secretário Especial de Saúde Indígena (Sesai), Ricardo Weibe Nascimento Costa, ressaltou a instalação de dois hospitais permanentes, um na região de Boa Vista e outro na região de Surucucu, a serem inaugurados no dia 14 de abril, para tratamentos de média e alta complexidade. Segundo ele, a decisão do governo federal foi acertada e vai auxiliar a desafogar a superlotação da Casa de Saúde Indígena (Casai) e agilizar a atenção médica aos mais de 31 mil indígenas localizados na região localizados em mais de 376 comunidades. 

— Não é possível que um território dessa complexidade, com 10 milhões de hectares, com quase 380 comunidades, com uma população de mais de 30 mil indígenas, que a gente precise levar toda hora para atendimento em Boa Vista. Isso onera os cofres públicos e a gente precisa facilitar e levar dignidade para o povo ianomâmi.  

De acordo com Ricardo Weibe, até março, o Hospital de Campanha da Força Aérea Brasileira (HCAMP) e as ações da Casai, em Boa Vista, possibilitaram 755 atendimentos e uma média de 465 altas foram identificadas. As hospitalizações geralmente são em decorrência da desnutrição, pneumonia, malária e doenças diarreicas agudas que estão quase sempre ligadas à contaminação ambiental pelo mercúrio. 

Mercúrio 

Estudos da Hutukara Associação Yanomami informam que o garimpo ilegal teria crescido 54% em 2022. Ainda de acordo com a entidade, a atividade garimpeira seria a responsável pelo crescimento de 309% do desmatamento de 2018 a 2022.

O pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Cesar Basta, que estuda a contaminação dos territórios indígenas há anos, alertou que os efeitos dos impactos ambientais em razão do mercúrio é generalizado e não apenas para as comunidades isoladas. 

Ele apresentou estudo feito pela instituição no estado de Roraima que coletou amostras de 75 pescados, recolhidos diretamente da mão dos pescadores. O resultado revelou que todas as espécies estavam contaminadas por mercúrio afetando todos os seres vivos que se alimentam de pescado.

— As amostras revelaram que todos os peixes, sem exceção, tinham níveis de contaminação, e esses níveis variavam de acordo com o nível trófico do pescado. Já se sabe que os peixes maiores e os peixes carnívoros acumulam quantidades maiores de mercúrio no seu corpo e, com isso, a medida que esse consumo vai aumentando, pessoas que se alimentam desse pescado podem ter riscos importantes para a saúde  concluiu.

Fonte: Agência Senado

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