Governo do Brasil turbinou pandemia ao ignorar circulação do vírus, diz ‘Science’

Um estudo publicado na Science, uma das mais importantes revistas de divulgação científica do mundo, apontou falhas que favoreceram a propagação descontrolada da covid-19 no Brasil. Segundo o trabalho, divulgado nesta quarta-feira, 14, na mesma semana em que se discute uma CPI para apurar responsabilidades da pandemia, o vírus se espalhou porque o País fracassou na tomada de medidas coordenadas e equitativas contra a doença, em contexto de profundas desigualdades socioeconômicas.

Atualmente, o território brasileiro é o epicentro mundial da pandemia. Tem explosão de casos e sistema de saúde em colapso. Os mortos são mais de 350 mil.

Assinado por dez cientistas do Brasil e dos Estados Unidos, o trabalho tem como principal autor a demógrafa Márcia Castro. Ela integra o Departamento de Saúde Global e População da Universidade Harvard. O estudo analisa trajetórias, velocidade e intensidade da propagação da covid-19 no País. Cita indicadores de aglomeração populacional, combinados a medidas políticas adotadas.

A conclusão, segundo Márcia, é que, embora “nenhuma narrativa única possa explicar a propagação do vírus”, há alguns motivos principais que ajudam a entender por que a pandemia alcançou tal patamar no Brasil.

O estudo aponta que a ausência de vigilância genômica bem estruturada, em um País de dimensões continentais, deixou o vírus circular por mais de um mês sem ser detectado. As profundas desigualdades sociais e econômicas entre as regiões também ajudaram no descontrole.

“O Brasil é grande e desigual”, diz a demógrafa. “Com disparidades em quantidade e qualidade de recursos de saúde (por exemplo, leitos hospitalares, médicos) e de renda.”

Crise humanitária

Não houve ação conjunta, coordenada pelo governo federal, para enfrentar a pandemia. A polarização, segundo Márcia, politizou a pandemia. Assim, impactou a adesão às ações de controle. O presidente Jair Bolsonaro é contrário ao lockdown. Também defende remédios sem eficácia contra a doença.

“Uma densa rede urbana que conecta e influencia os municípios por meio de transporte, serviços e negócios não foi totalmente interrompida durante picos de casos ou mortes”, lembra Márcia. “Cidades impuseram e relaxaram medidas em diferentes momentos, com base em critérios distintos, facilitando a propagação da doença.”

A conclusão do trabalho é que, se nenhuma medida mais drástica for tomada contra a pandemia, o Brasil deve enfrentar uma crise humanitária sem precedentes. O País, nesse caso, poderá se tornar uma ameaça à saúde global.

“Sem contenção imediata, com medidas coordenadas epidemiológicas e de vigilância genômica, além do esforço de vacinar o maior número possível de pessoas no período mais curto de tempo, a propagação da P1 (a variante do vírus descoberta em Manaus que já se revelou até duas vezes mais transmissível) levará a uma perda de vidas inimaginável”, sustenta o estudo. “A falha na detenção desta segunda onda de propagação vai facilitar o surgimento de novas variantes, isolar o Brasil como uma ameaça à saúde global, e levar a uma crise humanitária completamente evitável.”

Evolução nos tratamentos

Outro estudo, com oito autores brasileiros, foi publicado também nessa quarta, na Intensive Care Medicine. O trabalho avaliou a evolução de 13.300 pacientes de covid-19 internados em 126 unidades de terapia intensiva de uma rede privada de hospitais. As internação foram entre 27 de fevereiro e 28 de outubro de 2020. O levantamento revelou queda na mortalidade ao longo desse período de até 42%.

“O que a gente quer mostrar é que o que aprendemos ao longo desse ano de pandemia leva à redução de mortalidade, embora isso não esteja disseminado em todo o sistema”, diz o infectologista Fernando Bozza, da Fiocruz e do Instituto D’Or de Pesquisa (Idor), um dos autores do estudo.

Segundo o estudo, o aumento do uso de ventilação não invasiva no período inicial da internação e a prescrição de esteroides ajudaram na redução. “É importante lembrar também que, no mesmo período, a idade média dos pacientes internados na rede privada caiu de 57 anos para 53 anos. Isso significa pacientes menos frágeis”, disse.

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