Funcionária assediada por Caboclo relata ameaças recorrentes e intromissões

Vítima de assédio moral e sexual de Rogério Caboclo, presidente afastado da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a denunciante dos abusos praticados pelo chefe da instituição símbolo da seleção brasileira relatou em depoimento à Comissão de Ética do Futebol Brasileiro ter sido alvo de intromissões não consentidas em sua privacidade e ameaças que punham em risco a sua vida.

O Estadão teve acesso ao documento compartilhado com o Ministério Público Federal (MPF), onde constam relatos de um cotidiano perturbador de perseguição e violência psicológica. Segundo a funcionária, Caboclo teria dito que “acabaria com a sua carreira e que cada dia que ele perdesse de sono seria um dia a menos para ela”. O presidente da CBF foi afastado no dia 6 de junho pela Comissão de Ética. No último dia 3 de julho, o afastamento foi prorrogado por mais 60 dias. Os registros obtidos pelo Estadão apenas reproduzem declarações apresentadas pela secretária aos conselheiros de futebol.

O depoimento foi colhido no dia 14 de junho, dez dias depois de terem sido revelados os áudios gravados pela vítima, em que o presidente afastado da CBF foi flagrado em conversas constrangedoras assediando a funcionária. As gravações mostram que Caboclo não tinha pudores ao fazer questionamentos de foro íntimo. Na ocasião, ele chegou a perguntar à secretária: “você se masturba?”.

Conforme consta no documento, nesse mesmo dia Caboclo teria chamado a funcionária para acompanhá-lo ao jardim de inverno contíguo ao seu gabinete. Já havia anoitecido, e, conforme a descrição, ele a levou para o “lugar sombreado, que conta apenas com iluminação indireta, onde [Rogério Caboclo] estava bebendo vinho”. Lá, teria pedido que ela retirasse a máscara de proteção contra a Covid-19 e oferecido vinho, ambos negados pela secretária, que vivenciou infortúnios na relação com o então chefe.

“No que a declarante negou, passou a falar coisas desconexas porém de temas desagradáveis à declarante, chegando a declarar que tinha ‘umas 200 putas’ em sua agenda de celular, emendando em seguida ‘200 não, mas umas 20’, referindo-se de forma chula a prostitutas”, retrata o documento.

Assustada, a depoente disse ter pedido a ajuda a dois diretores por um aplicativo de mensagem. Um deles, que ainda se encontrava na instituição, chegou a ficar alguns minutos na sala do presidente na tentativa de ajudá-la, mas, após a sua saída, Caboclo teria retomado as investidas. Foi então que ela decidiu gravá-lo.

O registro é apenas um dos diversos eventos de abuso relatados pela ex-funcionária da CBF. Ela conta que seu ex-chefe tecia constantemente comentários sobre seu corpo e sua aparência física, e chegou a dizer que ela “deveria mudar as vestimentas, que, segundo ele, seriam inadequadas”. Caboclo dizia ser “inacreditável que, com esses atributos, (a secretária) ainda estivesse solteira”. A pressão sobre a conduta exigida chegava ao ponto de o dirigente cercear a liberdade de sua subordinada sobre o próprio corpo, com orientações como “fazer luzes” nos cabelos e “usar cílios postiços”.

“Para tanto, ofereceu os meios para que a declarante comprasse novas roupas e fosse a um salão de beleza para [fazer] as mudanças que julgava que a declarante deveria fazer”, diz o trecho do documento obtido pelo Estadão. A secretária afirmou ter atendido às ordens do chefe. A vítima também afirma que sua vida pessoal já foi pauta de reunião conduzida pelo presidente.

No dia 21 de setembro de 2020, Caboclo reuniu oito diretores para anunciar um noivado não existente de sua secretária com um colega de serviço. Na verdade, a vítima tinha passado a dividir o apartamento com um amigo do trabalho para que ele não expusesse a mãe ao vírus de Covid-19.

“O clima foi de constrangimento por parte dos presentes, e mais ainda pela declarante, que ficou imensamente incomodada e sem ação e, ainda assim, permaneceu no local até que todos fossem liberados”, consta no depoimento.

A perseguição e violação moral incessantes no ambiente de trabalho teria levado a vítima a sofrer distúrbios psicológicos. “Diante da radical mudança de postura da declarante, bem como de suas reações de crises de ansiedade e extremo nervosismo quando na presença de Rogério Caboclo, este passou a oferecer toda sorte de auxílio, por exemplo, afastamento do trabalho e ajuda financeira”, consta no documento, em possível tentativa de coagir a depoente a não denunciar.

ALCOOLISMO – Das cinco páginas que compõem o depoimento, duas são dedicadas aos relatos de comportamento alcoólatra por parte de Rogério Caboclo. De acordo com a depoente, o presidente afastado da CBF ingeria bebidas alcoólicas durante o expediente na sede da instituição e em compromissos externos.

“A ingestão de bebidas alcoólicas ultrapassava até mesmo a medida do razoável e socialmente aceito fora do ambiente laboral, podendo afirmar que era nítido o exagero, o efeito sobre suas atitudes e decisões, bem como sobre sua forma de se expressar”, diz o documento, que transcreve depoimento da vítima ao Conselho de Ética de Futebol.

Em um dos eventos narrados pela ex-secretária, Caboclo teria se apresentado alterado em público no “Prêmio Brasileirão 2020”. Segundo ela, a equipe da CBF havia redigido um discurso de quatro minutos, que foi substituído por uma fala extensa de vinte minutos de improviso. A ex-funcionária conta que, como a esposa e os filhos do presidente estavam presentes, a orientação costumeira de que garrafas de vinhos fossem deixadas no banheiro de seu gabinete foi alterada para que as bebidas ficassem na sala da vice-presidência, que estava desocupada.

O vinho de sua escolha era sempre o português “Cartuxa Reserva”, que custa de R$ 239,00 a R$ 800,00. O vício em álcool era custeado pelo setor de compras da CBF, vinculado à Diretoria Financeira. O diretor, porém, não era consultado sobre as compras que eram autorizadas diretamente por Caboclo.

Em viagens a trabalho, a secretária era ordenada a pedir as garrafas de vinho em sua comanda do hotel e levá-las ao quarto de Caboclo, de modo que os registros de consumo excessivo não constassem no nome do presidente da CBF.

Segundo declarou a depoente, a CBF proíbe o consumo de bebida alcoólica por funcionários no ambiente de trabalho. Portanto, caso algum diretor tivesse acesso às comandas em nome da secretária, ela seria “imensamente prejudicada”

O então presidente da CBF beberia em média duas garrafas por dia, segundo a depoente. Ela explica: “Tais garrafas eram mantidas na estação de trabalho da declarante e, quando solicitada, deveria deixar a garrafa já aberta no banheiro do gabinete, de uso exclusivo do presidente da CBF, acompanhada de uma taça; isso acontecia diariamente após o almoço, e o consumo durava toda tarde até o término do expediente”.

“O consumo de bebida alcoólica por Rogério Caboclo era de conhecimento geral dentro da CBF, sendo bastante comum que diretores, antes de pedirem para despachar ou conversar com ele, perguntassem à declarante ‘como ele está?’, referindo-se ao seu estado em razão do consumo de álcool até aquele determinado momento”, disse a secretária em seu relato.

COM A PALAVRA, A DEFESA DE ROGÉRIO CABOCLO: Procurados pela reportagem, os advogados de defesa de Rogério Caboclo disseram não haver tempo hábil para que as perguntas enviadas pelo Estadão fossem respondidas de forma a refutar quaisquer acusações eventualmente inverídicas prestadas pela secretária contra seu cliente. O caso, no entanto, já foi repercutido amplamente por outros veículos de imprensa nos mesmo termos exigidos pelo Estadão.

A reportagem deixou claro que caso a defesa decida enviar as respostas após a publicação desta matéria a mesma será atualizada.

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