Ele viveu com dois corações no peito por 45 dias
Os problemas cardíacos de Paiva deram o primeiro sinal no ano passado: um enfarte em casa o levou para o hospital. Depois de um acidente vascular cerebral e duas paradas cardíacas, recebeu a notícia de que 70% de seu coração estava “morto” e entrou na fila do transplante. Foi então que teve um novo revés: nem mesmo um coração novo resolveria o caso, já que a pressão alta no pulmão impedia o sucesso da cirurgia. “Eu era uma bomba-relógio.”
Para reduzir a pressão pulmonar, Paiva poderia usar uma espécie de coração mecânico por alguns meses até que fosse possível o transplante, mas ele sabia que conseguir essa máquina era caro e demorado – a bomba artificial não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) nem é coberta pelos planos. Enquanto isso, os dias corriam e a previsão era viver poucos meses.
Internado no Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas da USP, ele soube que um médico estudava um procedimento nunca antes tentado. A técnica consistia em implantar um novo coração, de um doador – mas sem tirar o antigo do peito. Paiva viveria por algumas semanas com dois corações para que a pressão pulmonar caísse e fosse possível, então, deixar só um. Foi o que aconteceu.
Enquanto coexistiam no tórax, os corações desempenhavam funções diferentes. “O lado direito ficou conectado, por dentro, nas veias que puxam o sangue do cérebro, cabeça e dos dois braços. O sangue que vem do intestino, fígado e pernas caía direto no antigo, não passava pelo novo. É como um quebra-cabeça. Desmontei e montei de novo, do jeito que imaginei”, diz Fábio Gaiotto, cirurgião cardiovascular do Incor que criou a técnica.
Esse arranjo novo tem o efeito da bomba artificial: ajuda a reduzir a pressão pulmonar. Colocar dois corações para funcionar ao mesmo tempo não é novidade. Na década de 1970, esse tipo de cirurgia foi realizada, mas a forma de inserir o novo coração era diferente e os pacientes não sobreviviam por muito tempo.
Foi assim que o cirurgião do Incor pensou que, na verdade, o plano de dois corações deveria ser algo provisório: apenas um caminho para chegar ao transplante definitivo. Gaiotto estudou a técnica por mais de três anos. Paiva foi operado em agosto e ficou 45 dias com os dois corações. Nesse tempo, causava surpresa em toda a equipe do hospital.
“Quando tentavam medir minha frequência cardíaca, somavam-se os dois batimentos. As enfermeiras ficavam loucas”, lembra. Em outubro, os médicos notaram que a pressão pulmonar havia diminuído – um bom sinal. Mas detectaram um coágulo no coração doente que poderia levar Paiva à morte – ele mesmo percebeu que quase não conseguia mais sentir os dois batimentos.
Decidiram que aquela era a hora de retirar o coração de Paiva e deixar funcionando apenas o coração doado. “Era preciso desmontar fio por fio e colocar o coração novo em outro lugar. É um autotransplante”, diz Gaiotto. “Passei tranquilidade para a equipe, mas eu mesmo estava inseguro porque não sabia se conseguiria fazer a troca.” Paiva se recuperou bem e teve alta no dia 5 – agora com um só coração. Os cuidados são de um transplantado comum. E a expectativa de vida subiu para 20 anos.
Futuro
Segundo Gaiotto, será preciso replicar o procedimento em mais pacientes para que a cirurgia seja validada cientificamente. Já há três novos candidatos em avaliação e um estudo deve ser realizado com outros hospitais pelo País. A estimativa é de que só no Incor dois a três pacientes – que morreriam sem acesso ao coração mecânico – possam ser operados por mês com a nova técnica. O tratamento com a bomba artificial é raro no Brasil e custa ao menos R$ 1 milhão.
“Um coração mecânico ia ajudar, mas só a mim, a mais ninguém”, diz Paiva. “Isso me chamou a atenção.” Em casa, ele ainda tem restrições, mas recebe visita dos filhos, está com a mulher e se prepara para defender o doutorado. “Meu caso não é milagre ou sorte. É o trabalho de muita gente”, diz o urbanista. “Refleti sobre a finitude da vida e percebi, em um hospital público, a importância que tem o SUS. Só estou vivo por causa do SUS.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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