De forma inédita, seis alunos surdos defendem mestrado na pós-graduação da UFPR na mesma semana

Seis pesquisadores surdos defendem dissertação de mestrado na Universidade Federal do Paraná no mês de fevereiro. O Programa de Pós-graduação em Letras já titulou outros três mestres surdos anteriormente, mas, pela primeira vez, um grupo expressivo de estudantes defende a titulação no mesmo período.

Entre os mestrandos, quatro são egressos do curso de Licenciatura em Letras Libras da UFPR, outros dois são provenientes dos estados de Minas Gerais e Pernambuco. Todos recebem orientação do professor André Xavier, que desde 2006 trabalha com fonética e fonologia da Libras.

De acordo com Xavier, o programa vem consolidando uma política de inclusão de alunos surdos desde 2020, com o credenciamento de docentes que orientam estudantes surdos e ouvintes interessados na descrição e análise linguísticas da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Algumas disciplinas são ministradas em Libras e também há incentivo para a produção de dissertações e teses utilizando a língua da comunidade surda.

A acessibilidade linguística inclui a tradução para Libras do regimento do programa, de editais de ingresso e de bolsas. Os intérpretes participam desde os processos seletivos até reuniões com discentes, disciplinas e bancas de qualificação e defesa. As ações são realizadas em parceria com a Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade (Sipad) da UFPR.

Também defendem a dissertação pelo programa, na mesma semana, dois pesquisadores ouvintes que atuam como intérpretes de Libras, sendo uma servidora da UFPR. As oito defesas (seis estudantes surdos e dois ouvintes) acontecem de 26 a 29 de fevereiro, com a participação de professores surdos e ouvintes da UFPR e de outras instituições. Sete bancas serão integralmente em Libras, inclusive de um dos pesquisadores ouvintes, que será avaliado por professores surdos.

“Isso representa um marco histórico para área, uma vez que subvertemos a lógica dominante do uso do português como língua principal da ciência no Brasil, favorecendo o uso da Libras, uma língua minoritária, também na esfera acadêmica”, destaca o orientador André.

As pesquisas desenvolvidas abrangem aspectos variados da gramática da Libras, como processos e aspectos fonológicos; morfológicos e lexicais de sinais referentes a cores; sinais toponímicos; processo de criação de sinais técnicos; incorporação de numeral; boias de listagem e modalizadores de necessidade e possibilidade.

Mestrandos protagonistas

Em uma conversa por vídeo, os oito pesquisadores contaram um pouco das suas trajetórias e anseios. A entrevista remota foi realizada com mediação dos intérpretes que integram o grupo de orientandos do professor André e também defendem a titulação.

Ao conhecer minimamente os principais desafios e inquietações que trouxeram cada um deles até a fase final do mestrado, a primeira conclusão é de que a acessibilidade no ensino transforma vidas. Somente com acesso à educação é possível haver uma inclusão menos desigual para pessoas que enfrentam preconceito e dificuldades pelo caminho.

Dentre os pesquisadores, os que passaram por colégios bilíngues para surdos na infância, com a presença de professores intérpretes, receberam ali o incentivo para seguir os estudos. É o caso da Amanda que, ao frequentar os anos iniciais da escola, já brincava de ser professora. Durante a primeira graduação, na área de recursos humanos, não teve um bom desempenho pela falta de acessibilidade. Anos depois, quando ingressou no curso de Letras Libras da UFPR, encontrou professores que utilizavam Libras e intérpretes e viu as notas subirem.

“Percebi que o curso foi feito para que eu pudesse aproveitá-lo ao máximo. Comecei a desenvolver interesse pela pesquisa durante a disciplina do professor André e vi que havia poucos estudos na área de fonologia da Língua Brasileira de Sinais. Dei continuidade ao trabalho de conclusão de curso agora no mestrado, foi uma experiência maravilhosa e vou começar o doutorado em seguida”, conta.

Já Ronaldy Heitkoetter, morador da Lapa, decidiu cursar Letras Libras pela UFPR mesmo sem apoio e sem nenhum integrante da família saber Libras. E os sonhos deram frutos, o mestrado que parecia uma realidade tão distante está quase concluído. “Meu objetivo é difundir a Libras. Por isso decidi cursar o mestrado”, reforça.

Em comum, os pesquisadores querem seguir pela área da docência e inspirar outros estudantes surdos. Há inclusive quem já está na carreira, como Rafaela Korossy, natural do Rio Grande do Norte. Professora de Letras Libras da Universidade Federal de Pernambuco, Rafaela inscreveu-se em disciplinas da Pós-Graduação em Letras na UFPR durante a pandemia.

O acesso aos intérpretes, a orientação em língua de sinais e as políticas afirmativas são diferenciais apontados pela docente como responsáveis pela UFPR ser referência na área. “Espero que outras universidades sigam esse exemplo”.

Katherine também quer seguir pela docência, mas nem sempre foi assim. Sua primeira formação, em Arquitetura, até a levou a trabalhar em um escritório na área. Até que a vontade de compreender melhor a Língua Brasileira de Sinais a fez cursar Letras Libras na UFPR.  

“Não pretendo voltar para a arquitetura, encontrei muitas restrições na área e infelizmente a sociedade ainda não está receptiva. Vi a possibilidade de alinhar arquitetura e língua de sinais nas pesquisas e comecei a estudar a designação de cores da Libras”, explica a pesquisadora.

A mestranda Mirella Araújo também veio de outro estado (Minas Gerais) para conseguir o título de mestre. Formada em Juiz de Fora, ela relata que ficou impressionada com a qualidade das aulas para os alunos surdos na UFPR, com professores que têm domínio da Libras.

Durante o mestrado, Mirella identificou a escassez de pesquisas referentes aos nomes de lugares (topônimos) e decidiu incluir nos estudos o estado em que reside. “Comecei a pesquisar topônimos da Zona da Mata Mineira no Sul de Minas Gerais e fiz um levantamento desses sinais”.

Sobre a experiência de viver em outros lugares, Ítalo Urbanski conhece bem. Antes de ingressar no curso de Letras Libras da UFPR, residiu na Inglaterra, onde os planos de ingressar em uma universidade eram quase impossíveis. Diferente das universidades públicas brasileiras, o acesso ao ensino superior no Reino Unido tem um custo alto e o ingresso é burocrático.

Ao retornar ao Brasil, Ítalo ingressou no curso de Letras Libras da UFPR e, pela primeira vez, encontrou um conhecimento aprofundado na área. “Foi muito impactante quando tive acesso a informações sobre Libras. A diferença entre Brasil e Inglaterra é gritante, mas ver surdos produzindo academicamente aqui é muito positivo”, avalia.

Pesquisadores intérpretes

Outros dois pesquisadores ouvintes, que também defendem a dissertação, são intérpretes. Com histórias parecidas, começaram a interpretar ainda na infância e, ao longo dos anos, além de atuarem voluntariamente nos mais variados locais e situações, viram o que sabiam fazer tornar-se uma profissão.

Thyago Santos é de São Paulo e aprendeu Libras aos oito anos de idade, frequentando uma igreja onde havia pessoas surdas e, desde então, não parou mais de interpretar.

Em 2011, formou-se em Biologia e atuava como professor, chegou até prestar mestrado na área, mas viu que não queria seguir as oportunidades da carreira. “Comecei a perceber, como intérprete e professor, a defasagem no ensino de pessoas surdas”, diz. Thyago defende ainda que as políticas das universidades permitam a produção acadêmica em Libras.

A servidora da UFPR, Priscila Mara Simões está na carreira técnico-administrativa em educação há oito anos e atua na Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade. Ela e os irmãos aprenderam Libras em casa para se comunicarem com a tia que cuidava deles e era surda. “Não imaginávamos que seria uma profissão um dia”.

Formada em Letras Português pela UFPR em 2002, a pesquisadora destaca que é um desafio trazer o significado da Libras para a Língua Portuguesa. “A Libras é pouco pesquisada e descrita”. A pesquisa de Priscila aborda modalizadores de possibilidade e necessidade na Língua Brasileira de Sinais e a defesa terá a participação de uma especialista argentina, a docente convidada Rocio Martinez, da Universidade de Buenos Aires.

Inclusão na UFPR

A Universidade Federal do Paraná possui 25 estudantes surdos na graduação, sendo 19 no curso de Letras Libras e o restante dividido em diversos setores da instituição. Também há previsão de ingresso de um novo aluno surdo no segundo semestre de 2024. 

“Nos últimos dez anos, a UFPR passou a ser uma referência no que se refere à inclusão de pessoas surdas”, afirma o superintendente de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade, professor Paulo Vinicius Baptista da Silva. “Com a inclusão de estudantes surdos, passamos a aprender a importância do cuidado e do reconhecimento da pessoa surda, ao mesmo tempo em que temos esse processo efetivo de formação das pessoas na instituição e o reconhecimento da sociedade e da comunidade surda do Paraná por sermos uma universidade comprometida com inclusão social e igualdade”.

O Programa de Pós-Graduação em Educação já possui sete mestres e dois doutores formados. No PPG Letras, além dos três mestres egressos e do grupo que defende dissertação neste mês de fevereiro, também haverá a primeira defesa de doutorado. “São programas de excelência, com nota sete, estão no alto da escala de qualidade da Capes. Ao mesmo tempo colocam a qualidade e o mérito junto com a inclusão social, isso é muito significativo para a instituição”, conclui Silva.

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