Homem-massa: cuidado para não se tornar um
Por Jelson Oliveira
Esse não é um manual de instruções. Mas pode se tornar. Quando o filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu o seu “A rebelião das massas”, ele forneceu um diagnóstico de um dos eventos mais marcantes da modernidade: o aparecimento de um tipo de pessoa (não raro reunida em um grupo) que foi definida por ele como homem-massa (claro, também, mulher-massa, jovem-massa, idoso-massa etc.). Para o filósofo, o perigo dos perigos vem à tona quando essa gente-massa assume o protagonismo social. O resultado é o esfacelamento da ideia de nação e o surgimento do caos social que ele chama de invertebração histórica. O homem-massa corrói tudo ao redor, a começar pelos grandes fundamentos da cultura. Esse tipo humano débil e vulnerável desfila seus slogans ilusórios atirando para todos os lados, sem nenhum critério. Sua marca é a inautenticidade e, por isso, ele centrifuga tudo que dele se aproxima, para tornar tudo raso e sem caldo.
Acrítico, portador de falsas qualidades e vive sem motivações. É um sujeito de direitos sem deveres, uma espécie de herdeiro que desperdiça a herança, porque ele quer usufruir todas as vantagens da civilização sem fazer nenhum esforço para conquistá-las ou garanti-las. Quer usar os direitos sem ter nenhuma ideia de como foram conquistados e o que deve ser feito para serem preservados. Por isso, ele não aceita as regras do jogo, mas quer jogar. E quando o jogo não lhe agrada, ele rouba a bola, como um menino mimado. Vive em busca de vantagens, comodidade e segurança, o que facilmente leva à inércia. Seu mal maior é a inércia intelectual. Embora, contraditoriamente, essa preguiça intelectual produz uma ação direta: ele vive tendo o que dizer, opina sem reservas e tem sempre alguma tarefa para passar para os outros, especialmente os governantes, enquanto ele mesmo se exime. Critica todas as ações dos outros, odeia quem faz alguma coisa, critica quem aparece e toma a liderança, enquanto ele mesmo se esconde na sombra, esperando a hora de vir à luz com suas acusações. E prefere fazê-las em público, porque assim ele passa a impressão enganosa de coragem e compromisso com a causa que não é sua. E é isso que o torna tão perigoso, porque hoje ele conta com uma ferramenta muito rápida e eficiente: as redes sociais. O homem-massa adora postar todo tipo de opinião e o faz, fanaticamente, como quem cultiva as pérolas mais preciosas. E não raro, esse fanatismo se transforma em ódio e intolerância. Ele ataca a quem bem entender, espalha suas opiniões sem critério, não aceita críticas e não vê nenhum limite. Ah, claro: com isso, ele sempre conta com aplausos de seus correligionários, militantes da mesma falta de causa, sucessores e sectários cujo comportamento é incentivado mutuamente. E ele adora os demagogos, na presença dos quais ele se sente confortável, como quem se religa à sua fonte original. É por isso que ele parece um religioso em adoração ao seu deus.
O homem-massa vive, assim, sempre no exterior – desconfia-se mesmo que ele não tenha um “dentro”. Tudo nele não parece passar da superfície: suas ideias postiças parecem sem raiz, sua força vital se abastece do rancor e da animosidade aos outros. Se o amor vincula, o ódio do homem-massa dispersa, rompe conexões, cria inimizades, orienta-se para fora. Seu ódio nasce de um medo e de uma preguiça diante da alteridade: ele não se interessa realmente por ninguém e nem por si mesmo. Falta-lhe intimidade, um eu que lhe seja próprio. Ele sempre parece estar fingindo ser outro. Ele está sempre no fora de si, desumanizado, automatizado, vivendo como função na grande engrenagem das coisas, sem saber disso e, pior, reivindicando consciência plena. O homem-massa é risível.
A vida do homem-massa é uma pura ficção de outra vida, uma representação falseada, uma tentativa de enfeitar sua feiura horrorosa. Por isso, ele reivindica sempre um tipo de liberdade que, no fundo, é irresponsabilidade: ele não sabe com que preencher o seu tempo livre, ele teme a sua própria solidão, ele não tem projeto para si. Por isso, aprova facilmente qualquer coisa e embarca em qualquer barco furado, acriticamente.
A vida do homem-massa é a pobreza absoluta. Ele desfila suas bandeiras desbotadas, amarradas na cintura e nas janelas, dando de ombros para o significado mais profundo de palavras como humanidade, direitos humanos, respeito, responsabilidade ou qualquer um desses conceitos que, para ele, não têm nenhuma história e nenhuma importância. Ele aplaude a polícia que matou dezenas, dizendo que os mortos não farão falta – mesmo sem ter nenhuma informação sobre os assassinados. Ele nega o racismo e reivindica o racismo reverso a favor de suas brancuras. Ele declara sua ojeriza aos gays mesmo quando diz que respeita sua “opção” – tem até uns amigos homossexuais que ele tolera. Quer queimar seu CO2 cotidiano e, para isso, nega as evidências do aquecimento global. Ele briga nas rodas de família a favor de suas incoerências e sempre reivindica o direito de dizer o que quiser, mesmo que isso cause feridas em quem quer que seja.
O homem-massa não sabe que a vida precisa de autenticidade. Ele não sabe que viver, como sugeriu o filósofo espanhol, é fazer aquilo que ninguém pode fazer por nós e que isso demanda integridade, projeto, senso de comunidade e, sobretudo, respeito e interesse pelos outros. Ele não sabe que viver é uma revelação: não um contentar-se com o ser de agora, mas um ir adiante, uma abertura e um descobrimento incessante de tudo que está ao redor. O homem-massa, por isso, frequenta cavernas escuras, das quais ele se recusa a sair. Na última vez que ele viu a luz da verdade, ele matou o seu mensageiro.
Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
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