Gastura Literária
Ao final de um longo processo psicológico de regressão, eu havia escrito um inventário minucioso, honesto e destemido dos últimos setenta anos de minha vida. Sob outra perspectiva, o conjunto ordenado de fatos históricos — sociais, políticos, culturais, esportivos e até criminais — armazenados no meu cérebro, durante tanto tempo, estava no ponto de ser revelado.
Atento aos sinais, ao contemplar a enorme parede azulejada da estação Saldanha do metrô de Lisboa, chamou-me a atenção um dos aforismos escritos por anônimos: “Ser autor é trazer-nos inédito o que ainda pertence ao conhecimento geral”.
Era o elo que faltava para decidir utilizar minha autobiografia como “linha do tempo” para descrever, com as emoções evocadas na psicoterapia, os acontecimentos históricos alinhados na minha mente de uma maneira inédita.
Assim, em 1950, ao mesmo tempo que eu manifestava alegria ao conseguir saltar da plataforma de cinco metros de altura na piscina do Clube Banespa, relatava, com deslumbramento, a exibição da primeira imagem televisiva brasileira, retratada por uma atriz mirim vestida de índio — mascote da TV Tupi — proferindo a expressão histórica: “Boa noite, está no ar a televisão do Brasil”.
A promissora notícia foi o ponto de partida para a narrativa sequencial de fatos históricos dos próximos cinquenta anos, até a eclosão do bug do milênio, sempre transitando pela autobiografia e compartilhando as emoções vivenciadas.
Assim, as brincadeiras de rua na Vila Mariana, sem prédios e com pouco tráfego de automóveis, são descritas com a mesma leveza que o “conto de fadas” em que transforou-se o casamento da princesa Diana com o príncipe Charles, na Inglaterra; minha formatura no curso de Engenharia do Mackenzie e a história do Festival de Woodstock em Nova York, ambos descritos com triunfante entusiasmo; a conscientização de que eu estava chafurdado no alcoolismo e a preocupação decorrente das primeiras notícias do advento da Aids, com narrativas desesperadas; a satisfação de receber a ficha de um ano de sobriedade no AA acompanhou o júbilo do momento em que potentes motores rugiram, levando a nave espacial Columbia em direção ao espaço sideral.
O livro “Gastura – rastreando as profundezas de mente” é o convite que faço aos leitores a viajarem no tempo comigo — emprestando-lhes minhas emoções — e acompanharem as histórias de uma época, sem computadores nem celulares, na qual os jornalistas eram obrigados a disputar os poucos orelhões disponíveis nas cidades para tentarem um furo de reportagem.
* Fernando Machado é engenheiro civil e escritor, autor da obra “Gastura – rastreando as profundezas da mente”.