As possibilidades de diálogo com o mundo evangélico

Rebecca Abers, Marcelo K. Silva e Luciana Tatagiba

Como construir um verdadeiro diálogo com o mundo evangélico? Esse desafio ganha significado político na medida em que os evangélicos se constituem no segmento religioso que mais cresce no país e pelo intenso processo de politização ativado por lideranças religiosas conservadoras. Paradoxalmente, parcelas importantes da esquerda contribuem com este processo, e com o sucesso eleitoral das coalizões que essas lideranças apoiam, ao fazerem uma crítica generalizada e unificadora do mundo evangélico como inerentemente conservador. Nessa crítica, fiéis evangélicos são frequentemente reduzidos à condição de pessoas sem autonomia ou reflexividade, que respondem de forma dócil e passiva às manipulações de pastores e pastoras. As igrejas são tratadas como meros espaços de doutrinação, produtoras de uma massa de alienados que seguem cegamente as orientações de suas lideranças.

Essa visão preconceituosa e caricata não apenas ignora a heterogeneidade interna ao campo evangélico, como mantém no ostracismo político os evangélicos progressistas que há décadas constroem pontes entre a defesa do evangelho e o respeito aos direitos humanos, no cotidiano de suas igrejas. O ativismo evangélico progressista é parte de um processo global  de redefinição das fronteiras entre religião e política, como relata Joanildo Burity em “Minoritização, glocalização e política: para uma pequena teoria da translocalização religiosa”. No Brasil, os evangélicos progressistas participaram das lutas contra a ditadura e seguiram disputando suas igrejas e se posicionando na esfera pública em defesa da democracia e dos direitos humanos, ao longo dos últimos 30 anos – a história é retratada nos trabalhos de Flávio Conrado, Fernando Coêlho Costa, Paul Charles Freston e Zózimo Antônio Passos Trabuco.

Recentemente tivemos a oportunidade de ouvir lideranças evangélicas progressistas para uma pesquisa que realizamos e que foi publicada no livro “Participação e ativismos: Entre retrocessos e resistências”, que discute as profundas transformações da participação e do ativismo no Brasil dos últimos anos. Nas entrevistas, ouvimos vários relatos sobre como a crise política que culminou no impeachment de Dilma Rousseff e, principalmente, a campanha de eleição de Jair Bolsonaro serviu como um combustível para uma nova onda de criação e articulação de organizações de evangélicos em defesa da democracia. Quando perguntamos sobre as razões que estimularam essa nova onda, as lideranças que entrevistamos falaram sobre um duplo campo de batalha. Por um lado, dentro da igreja, lidavam com as ameaças e retaliações que passaram a sofrer desde que a extrema direita conquistou o poder. Muitos perderam posição na hierarquia eclesiástica, sofreram diversas formas de silenciamento, cerceamento aos espaços de interação com a base da igreja, exclusão da comunidade de fé e até mesmo ameaças contra sua integridade física. Por outro lado, junto à sociedade era preciso dizer que “evangélico não é tudo igual”, desafiando publicamente a pretensão da direita evangélica de falar em nome de todos os evangélicos.

Estas lideranças também enfrentaram preconceitos no campo progressista de forma mais ampla. Se no interior de suas igrejas, os evangélicos progressistas são acusados de não serem “suficientemente evangélicos”; na sua relação com os setores de esquerda na sociedade, são acusados de não serem “suficientemente progressistas”. Como afirma um de nossos entrevistados:a gente fica entre dois mundos, sabe? Porque nós não somos aceitos pelo modelo convencional de igreja, porque nos acham comunistas, nos acham de esquerda demais. E nós não somos muito bem-vistos pela esquerda por sermos cristãos. Então a gente fica meio que no limbo”.

Um ponto central de tensão se encontra na enorme dificuldade de grande parte da esquerda compreender a potência transformadora da religião, que é frequentemente tratada apenas como problema a ser superado através da “conscientização política”. Por um lado, as críticas aos evangélicos revelam a persistência de uma enorme dificuldade de amplas parcelas da esquerda, particularmente suas lideranças brancas e escolarizadas, de compreender a realidade e, especialmente, a cultura da imensa maioria da população pobre, negra e periférica do país. Para esta população, a fé ajuda a dar sentido e força para o enfrentamento de todos os obstáculos e violências que se colocam na luta pela sobrevivência. As igrejas são espaços de acolhimento e proteção em um mundo marcado por ameaças, inseguranças e abandono estatal. Os críticos menosprezam o valor do pertencimento a uma comunidade de fé em uma sociedade cada vez mais individualista e excludente. Ignoram o poder de uma identificação coletiva e digna para populações que vivenciam um cotidiano marcado por estigmas desumanizadores. Desconsideram que as igrejas não são apenas espaços de exercício da espiritualidade, mas também oportunizam o acesso a bens, relações e serviços que são fundamentais para a sobrevivência das populações mais precarizadas. E, acima de tudo, amplas parcelas da esquerda têm dificuldade de compreender que princípios morais religiosamente fundamentados têm tanta (ou, em certos casos, mais) importância que interesses econômicos na orientação das condutas e escolhas individuais.

Tais críticas, por outro lado, ocultam e desqualificam a intensa disputa política que atravessa o mundo evangélico contemporâneo. Ao contrário do que a visão unificadora expressa, a politização conservadora não foi vivenciada de forma passiva por religiosos e fiéis que crescentemente têm sido confrontados por discursos e práticas fundamentalistas, autoritárias e excludentes. Como mostramos no nosso estudo, integrando uma longa trajetória de protestantismo progressista no Brasil, esses religiosos e fiéis se envolvem ativamente na confrontação cotidiana do conservadorismo, utilizando diferentes formas de ação: enfrentando as lideranças conservadoras e sua pretensão de falar em nome do mundo evangélico; participando de processos eleitorais através do apoio a candidaturas progressistas e do lançamento de suas próprias candidaturas; combatendo as ações de desinformação; criando novas comunidades de fé para acolhimento daquelas pessoas que foram expulsas ou não se reconheciam mais nas suas comunidades originais; desenvolvendo ações e projetos sociais em prol de populações precarizadas; formulando e disputando referências teológicas que incorporam o compromisso com igualdade, justiça e direitos humanos.

Como se pode ver, as possibilidades de diálogo com o mundo evangélico já estão sendo construídas há muito tempo e muito além das disputas eleitorais. Como as teologias da libertação, da missão integral, negra, feminista, inclusiva, afirmativa, entre outras, demonstram, o cristianismo é conformado por valores, crenças e identificações que podem fundamentar e dar sentido a projetos políticos voltados à construção de um mundo mais justo e livre. A luta em torno destes valores tem sido árdua e os ganhos têm sido incipientes em um espaço religioso que continua dominado por forças conservadoras. Neste contexto, o preconceito que os defensores destas ideias religiosas sofrem dentro do próprio campo progressista apenas aumenta as dificuldades que enfrentam e diminui as chances de sucesso. Para nos unirmos nessa construção, é preciso um diálogo que suspenda os preconceitos e se baseie na disposição a ouvir, compreender e apreender. Como disse a pastora e deputada estadual Monica Francisco (PSOL-RJ):“A classe trabalhadora está dentro das igrejas . Essa classe trabalhadora são as mulheres negras, os jovens, os pardos, os que estão nos empregos informais, os que estão desalentados. Elas não são fundamentalistas. Elas não são conservadoras, porque elas nem sabem o que é isso. Na igreja é o lugar onde elas podem ser, lá é onde elas estabelecem relações de confiança. (…) Então, tem também uma questão de classe, tem uma questão de ódios também do lado de cá [da esquerda] que a gente precisa também elaborar, porque senão a gente vai perder cada vez mais essa narrativa”.

Hoje é comum se dizer que o campo progressista precisa construir pontes para conversar com os evangélicos. Na verdade, essas pontes já existem. Basta termos coragem para atravessá-las. Coragem que, como diz a deputada, envolve rever preconceitos, em muitos casos associados a posições de classe.

Rebecca Neaera Abers é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, co-coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre as Relações entre Sociedade e Estado (Resocie) e co-editora da Revista Brasileira de Ciência Política.

Marcelo K. Silva é professor titular do Departamento de Sociologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e coordenador do GPACE (Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento) da UFRGS.

Luciana Tatagiba é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e co-coordenadora do NEPAC (Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva). É autora de vários artigos e dentre seus trabalhos mais recentes destaca a co-organização do livro “Participação e ativismos: entre retrocessos e resistências”.

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