‘A democracia fica em risco sempre que a disparidade cresce’

“A pandemia é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes.” Com essa frase, Mary Jo McConahay, autora do livro América Latina sob Fogo Cruzado, explica o perigo da ascensão de governos autoritários na região e a necessidade de se olhar a história para não repetir os erros. Para a americana, o papel dos latinos durante a 2.ª Guerra deveria servir de lição para as nações que hoje assistem ao crescimento da extrema direita e às ameaças à democracia. Leia abaixo entrevista de Mary Jo McConahay concedida ao Estadão:

A sra. imaginava o tamanho da participação de atores latino-americanos?

Muitas vezes temos uma lacuna no conhecimento sobre lugares próximos e a América Latina foi encoberta pelas notícias de outros lugares na 2.ª Guerra, mas a razão pela qual a guerra é chamada de mundial é justamente por ter afetado todos os lugares. Para Franklin Roosevelt, o presidente americano durante a guerra, o maior medo era do que estava acontecendo na América Latina, em razão da proximidade com os EUA. Ele tinha muita simpatia pelos países que tinham uma enorme quantidade de riquezas, o que é fundamental para qualquer guerra que se aproxima. E esses recursos tinham de estar sob o controle dos EUA, pensava Roosevelt. A América Latina foi extremamente importante durante a 2.ª Guerra.

Por que as perdas de recursos na região não são abordadas com frequência?

Claramente, as histórias que não possuem elementos de orgulho são escondidas de nós. Durante a 2.ª Guerra, o Brasil, como vários outros países, com exceção da Bolívia, por exemplo, em algum momento fechou a porta para os judeus que fugiam do Holocausto. O meu país, os EUA, também fechou as portas, enquanto alguns latino-americanos, como um cônsul do México, por exemplo, faziam vistos falsos para essas pessoas entrarem nos países. E digo isso porque atualmente fazemos (EUA) a mesma coisa, fechamos as portas para refugiados que chegam de países latino-americanos fugindo da violência.

Qual o papel do Brasil nisso?

O Brasil foi extremamente importante para a vitória dos Aliados por conta de seus recursos naturais. Alguns especialistas americanos dizem que a produção de borracha do Brasil pode ter sido decisiva para ganhar a guerra. Dezenas de produtos, incluindo 20 mil partes de navios de batalha, foram feitas de borracha. Se não fosse por essa produção em um ponto crucial da guerra, a história poderia ter sido diferente. Talvez os brasileiros não entendam o incrível sacrifício que o País passou durante a guerra. Acho que as pessoas não têm noção do que o Brasil forneceu durante o conflito.

Que lições podemos tirar da importância da América Latina na 2.ª Guerra?

Como o poeta John Donne disse: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo”. Eu digo que nenhum país pode ser uma ilha em si mesmo, especialmente hoje em dia. Tudo que acontece em qualquer lugar tem efeito em todas as partes do mundo. Temos de ter consciência do que ocorre na Palestina, no Oriente Médio, na África, não apenas porque isso vai afetar o preço dos nossos produtos, mas porque a humanidade está conectada e ignorar isso é nos eximir de responsabilidades.

A sra. fala que alguns pontos da 2.ª Guerra já nos mostravam o que enfrentaríamos na atualidade. Pode explicar?

Não se pode dizer que campos de concentração, tortura, Estados que falam apenas de segurança nacional surgiram apenas na 2.ª Guerra. No entanto, é possível dizer que algo aconteceu naquele período que nos tornou familiar com essas táticas. Temos a tendência de achar que esse tipo de prática, de autocracia, apareceu do nada, mas conhecendo a história podemos entender melhor nossa atualidade. Existe uma ponte entre o que ocorreu na 2.ª Guerra e o que ocorre hoje.

Qual é o perigo do uso político da pandemia?

A pandemia, de certa forma, é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes. Falando dos EUA, a pandemia foi usada pela administração anterior (de Donald Trump) como ferramenta política para dividir. Por que? Porque a divisão favorecia quem estava no poder. A pandemia afeta brancos e negros, aqueles que recebem pouco, os mais pobres, da mesma forma que a guerra afeta. Esse é o motivo de termos a necessidade de olhar para o que acontece agora do ponto de vista humanitário, da mesma forma que foi feito na guerra. Claro que todos querem ser os primeiros na fila da vacina, mas é tempo de olhar para as histórias das crises e guerras e tirar lições disso para usar no presente.

A sra. acredita que a pandemia tornou mais evidente a fragilidade da democracia em alguns países?

Com certeza, inclusive aqui nos EUA, onde as populações mais vulneráveis, geralmente os mais pobres, negros e pardos, estão entre as que mais sofreram com a doença e mais morreram. Sempre que a disparidade cresce, como em uma crise sanitária, a democracia fica em perigo. A situação piora quando os líderes mentem ou tentam se aproveitar de algum tema que as pessoas sabem ser sério ou assustador.

Como a sra. vê o crescimento de governos autoritários na América Latina?

O crescimento do autoritarismo em qualquer lugar do mundo é preocupante. Na América Latina, onde tantos sofreram e morreram por justiça e democracia nos últimos anos, a volta das mentiras públicas e do autoritarismo é um desafio. As memórias são tão curtas? Tivemos uma ameaça assim nos EUA também, com o ataque à democracia de nosso ex-presidente e seus aliados, uma ameaça que continua circundando a vida política.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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